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sexta-feira, 5 de outubro de 2012

RELATORA DA ONU DEFENDE MAIS RESPEITO AO DIREITO À MORADIA NAS OBRAS PREPARATÓRIAS PARA A COPA

“Temos no país, nesse momento - em função do próprio processo de desenvolvimento econômico positivo que estamos vivendo - uma espécie de recrudescimento das violações no campo do direito à moradia adequada e de outros direitos humanos”. Essa é a visão da relatora especial para o Direito à Moradia Adequada da Organização das Nações Unidas e professora da Universidade de São Paulo, Raquel Rolnik, que encerrou, na noite da quinta-feira (4), o Simpósio: “I Semana Cultura e Cidade - Metrópolis”, realizado pelo Ministério Público e pela Universidade Federal do Paraná.  Leia entrevista completa. 

Terminou ontem (04/10), com palestra da professora da Universidade de São Paulo e relatora especial para o Direito à Moradia Adequada da Organização das Nações Unidas, Raquel Rolnik, o Simpósio: “I Semana Cultura e Cidade - Metrópolis”, realizado pelo Ministério Público do Paraná, por meio do CAOP de Habitação e Urbanismo e o CEAF, em parceria com o Programa de Educação Tutorial da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná. O evento discutiu o direito à cidade, em suas diversas nuances, sob os olhares urbanístico, jurídico e das artes.
Em sua fala no evento, Raquel tratou, entre outras questões, do aumento e das características das remoções que estão sendo feitas para a realização da Copa do Mundo, nas diversas cidades-sede brasileiras e definiu o que é direito à moradia. Para ela, a moradia, como direito humano, não tem a ver com o metro quadrado ou com o material com que são construídas as edificações. “Moradia é casa? Moradia adequada como direito humano não é falar sobre quatro paredes, o fundamental não é isso, e sim se, a partir de uma moradia adequada, a população terá acesso a outras coisas, como segurança, educação, saneamento...”. Disse: “Se a gente entender profundamente o conceito de moradia adequada, a gente consegue compreender quando esse direito está sendo violado”.Confira abaixo a entrevista concedida pela arquiteta e urbanista e, na sequência, fotos de todos os dias do evento.
Como a senhora vê o lado humano das desocupações que estão sendo feitas em função da Copa do Mundo, tema que a senhora vem estudando como relatora especial da ONU?
A urgência da implantação de projetos ligados à Copa, a predominância da ideia de construção de uma imagem de país e de cidade que possa reluzir nos meios de comunicação internacionais têm implicado uma atitude discriminatória em relação às pessoas que estão no meio do caminho desses projetos.  Não é por acaso que as obras de infraestrutura são projetadas e planejadas em cima das comunidades, numa ideia absolutamente errônea de que é muito mais fácil passar em cima de uma comunidade do que num bairro formal, regular, de classe média, porque sai mais barato. Mas ali tem uma atitude absolutamente discriminatória e equivocada do ponto de vista dos direitos. Discriminatória porque não reconhece o direito que aquelas pessoas têm de ter moradia adequada. E a ideia de que sai mais barato é absolutamente equivocada também porque isso implica não enfrentar o custo de um momento de expropriação dessas famílias, de construir uma moradia adequada para elas. Ou seja, tá baseado na ideia da violação, de que aquelas pessoas não têm direito. Isso é o pressuposto. O que também tenho examinado é que primeiro essas famílias são removidas e depois vai se pensar o que será do destino delas. E se trabalha com políticas transitórias como, por exemplo, a bolsa aluguel. O que estou observando bastante em São Paulo e no Rio de Janeiro também é que, teoricamente, a bolsa aluguel poderia ser uma alternativa enquanto aquela moradia adequada não fica pronta, mas aquela moradia adequada não vai ficar pronta nunca, porque não tem nem projeto dela, nem o espaço, nem o terreno; o que tem é a bolsa aluguel para aquela família sair da frente, para aquela comunidade que se organiza para tentar resistir se dispersar. Muitas vezes esse valor da bolsa aluguel não cobre o custo dessas famílias para morar, nem provisoriamente. Elas também são transitórias, uma hora acabam, e o que eu tenho visto é que as famílias somem, desaparecem. Enquanto a comunidade está lá, está junta, ela resiste. Na hora em que cada uma recebe uma bolsa aluguel, vai parar não sei aonde, normalmente vão morar em casas de parentes , porque aquela bolsa aluguel não dá pra alugar nem comprar nada. Elas acabam desaparecendo e o problema acaba sumindo, mas, na verdade, o que nós estamos produzindo são mais famílias sem teto, mais famílias ocupando áreas de risco, porque não têm mais alternativa, porque não têm onde morar. Então, nós estamos reproduzindo um problema, num momento em que justamente nós temos recursos para isso. Isso não é só pra moradia. O que eu tenho visto também é a retirada da população de rua dos locais onde vão acontecer os eventos, sem que, de novo, o equacionamento da situação daquela família seja parte dessa equação. Se uma família está na rua, algum problema deve ter. Então, esse problema tem que ser enfrentado, tem que ser equacionado, não pode ser simplesmente: “sai do caminho” e “isso não é importante”.  Acho que nós estamos fazendo errado, mas que ainda há tempo de corrigir, principalmente nas cidades - como é o caso de Curitiba e da Região Metropolitana  - onde essas obras não começaram.
 Existe alguma expectativa por parte da Relatoria Especial para o Direito à Moradia Adequada da Organização das Nações Unidas, em relação à atuação do Ministério Público brasileiro nas questões referentes a desocupações para obras da Copa do Mundo?
Existe uma enorme expectativa, considerando, é claro, as especificidades dos Ministérios Públicos nos diferentes estados. Acho que temos no país nesse momento - em função do próprio processo de desenvolvimento econômico positivo que estamos vivendo - uma espécie de recrudescimento das violações no campo do direito à moradia adequada e de outros direitos humanos.  O que tenho percebido é que comunidades inteiras que já tiveram reconhecido seu direito à moradia, através da própria Constituição Brasileira e toda legislação que a sucedeu e que instrumentalizou a Constituição, vivem uma experiência de retrocesso. Nesse momento, é como se isso tivesse retrocedendo. A coisa mais importante é a implantação desses projetos de desenvolvimento. Essas pessoas, o seu destino, para onde elas vão, como elas vão viver, o que vai acontecer, qual será o impacto na vida delas, não tem a menor importância. Retroceder também no sentido de sair de um conceito muito mais integral do que representa o direito à moradia adequada, que tem vários elementos, e reduzí-lo a um elemento só, que é “casa”. Portanto, não levar em conta, por exemplo, a localização. A localização não apenas numa área segura, que não é de risco, que não é exposta aos elementos da natureza, mas que permita ao indivíduo, à comunidade, à família, ter acesso à educação, à saúde, ao lazer, ao trabalho, às oportunidades econômicas, às oportunidades do desenvolvimento humano. Isso faz parte do direito à moradia adequada. O que nós temos visto é que isso não vem sendo respeitado. Também temos visto algo muito perverso que é, em nome do direito ao meio ambiente para todos os indivíduos, as famílias e as comunidades, a realização de remoções de comunidades inteiras sem considerar o impacto na sua vida, no seu direito; como se o direito ao meio ambiente tivesse precedência ou mais importância que o direito à moradia. Não. São ambos direitos e podem ser compatibilizados; e devem ser compatibilizados. Então, acho que há uma expectativa muito grande da relatoria de que o Ministério Público amplie muito mais a sua atuação dentro desse campo. Acho que o Ministério Público no Brasil tem sido fundamental na consolidação da democracia e da cidadania, mas está precisando avançar muito mais no âmbito da justiça social, dos direitos humanos e, particularmente, no direito à moradia adequada.
 Curitiba tem alguma situação diferente das outras capitais que vão receber a Copa?
A gente não sabe se é diferente, só está mais atrasada. Essa é a minha visão no momento, porque obras já estão sendo anunciadas, que vão atingir famílias, mas, a exemplo de outras cidades, a gente não sabe ao certo quantas pessoas serão atingidas, qual vai ser o equacionamento - seja das compensações financeiras ou reassentamentos oferecidos a essas famílias - quais são os projetos. As famílias atingidas ainda não receberam qualquer tipo de informação, não é dada a elas o direito de participar do equacionamento do seu destino; tudo isso que eu estou falando são direitos que fazem parte do direito à moradia adequada, o direito à informação, à participação. E previamente, com prazo para as famílias poderem se  posicionar, apresentar alternativas.  Às vezes, a gente faz uma curvinha naquela estrada, de três metros, e a gente evita a remoção de cinco ou seis casas. Então, existe todo um processo para tratar do assunto e eu não estou vendo Curitiba fazer esse processo. Por outro lado, como não aconteceram ainda as remoções, a gente não sabe ainda se isso vai acontecer dessa forma ou não.
 Quais são os impactos desses megaeventos para o futuro dessas cidades?
Até preparamos um material sobre os impactos dos megaeventos sob a forma de jogos. A gente pensa que tem o jogo dos megaeventos, das violações, que são faltas. E tem o primeiro tempo e o segundo tempo.  No primeiro tempo, aparecem as famílias atingidas diretamente pelas remoções; aparecem as famílias que têm suas situações de vida degradadas em função da própria obra. Se não se toma cuidado, metade da obra cai em cima da casa. Coisas desse tipo que eu tenho visto em São Paulo, no Rio de Janeiro, em visitas que fiz pessoalmente. A obra vai aparecendo e degradando também a vida de quem não foi removido, que ficou ali do lado. Esse é o primeiro tempo. O segundo tempo é o processo de transformação e valorização imobiliária decorrente de todas essas operações; que na verdade são grandes operações de valorização imobiliária, de construção de imagem, de abertura de frente de expansão do capital imobiliário, inclusive internacional, porque um grande megaevento esportivo internacional é um grande guichê de venda da cidade e dessas novas frentes de expansão. O que se vê no segundo tempo é o que a gente chama de “expulsão branca”, a expulsão pelo mercado. Ou seja, o fato de que você tem o encarecimento dos aluguéis, o encarecimento do custo de vida, e aí comunidades que tradicionalmente moravam naquele local têm que sair por uma questão de mercado. E tudo isso pode ser evitado por uma política pública preventiva, que proteja esses valores, que pode inclusive se valer da lei de uso e ocupação do solo para proteger esses valores, por exemplo, em determinadas áreas, impedindo a verticalização, garantindo a manutenção das casas, ou seja, há diversos mecanismos que podem ajudar a proteger esses impactos do segundo tempo,  quando virão e como virão.
 Qual área seria mais delicada em relação às desocupações para a Copa em Curitiba?
Vou visitar as áreas que em tese são as que serão atingidas ou estão sendo atingidas pelos projetos. Entre estes eu diria a construção da terceira pista e expansão do aeroporto, que vai envolver pelo menos cinco comunidades e algumas delas numa situação absolutamente difícil e precária. Também a construção do Anel Metropolitano, que vai atingir ocupações enormes no município de Piraquara, das maiores ocupações que a gente tem na metrópole, aqui, e isso também é uma grande preocupação minha. Acho que esses dois projetos são os que em tese vão atingir mais e provocar mais remoções. Algumas melhorias nas avenidas também acabam provocando algumas remoções e reassentamentos, principalmente na Avenida das Torres, que também tem comunidades às suas margens, muito consolidadas, muito antigas, que também estão sofrendo intervenções e precisam ser protegidas.
 Qual seria o principal desafio de Curitiba como metrópole?
Tem um desafio que é absolutamente genérico e que vale para Curitiba e para todas as metrópoles brasileiras. É o desafio, por incrível que pareça, ainda, da inclusão sócio-territorial de sua população. Nós estamos vivendo um momento muito positivo de transformação em equipamento das cidades, no desenvolvimento das cidades, em investimentos na direção de uma melhor qualidade urbanística. A pergunta é:  isso será para todos? Será que nós não estamos empurrando mais para fora, mais para adiante ainda os espaços da não-cidade, onde as populações mais pobres e mais vulneráveis vão acabar ficando? Infelizmente, o que a gente está vendo é isso, um processo de melhoria, de qualificação da cidade, positivo, mas não includente, não para quem está lá, não pra quem já vivia lá. Muito pelo contrário. Você tem uma expansão da fronteira, ainda, que hoje já não está mais nem no primeiro cinturão. Aquilo que aconteceu num município como São José dos Pinhais, nos anos 70, nos anos 80. Hoje, o município de São José dos Pinhais é muito mais consolidado, o que aconteceu no município nos anos 70 e 80 hoje nós estamos vendo acontecer, por exemplo, em Fazenda Rio Grande, Piraquara. Nós estamos vendo esse processo, essa periferia da periferia, essa hiperperiferia, se estendendo pra mais longe e ficando mais difícil para as famílias poderem sobreviver. Por mais que a gente esteja hoje - e isso é uma tendência positiva - distribuindo mais renda do que distribuíamos, num processo de crescimento econômico  dos pobres maior do que o processo de crescimento econômico geral médio, o que também é positivo - se tudo isso vai acabar se transferindo para o preço da terra, para o preço dos imóveis, então, de que adianta você aumentar de renda, se o valor dos imóveis ficou muito mais alto? E é isso que estamos observando. Eu acabei de escrever sobre isso. Tem aumentos nos últimos quatro, cinco anos, por exemplo, em cidades como o Rio de Janeiro, aumentos de preço de terreno de 165%, ninguém ganhou 165% no aumento da sua renda.  Só os banqueiros, grandes empresários, mas a população que cresceu sua renda não cresceu 165%. Então ela está ficando para fora, está ficando para trás. Acho que isso é um enorme desafio. E acho uma pena, porque nós construímos não só uma visão, uma utopia, mas nós construímos um ordenamento jurídico no Brasil que permite trabalharmos na direção da inclusão sócio-territorial. Só que infelizmente ele não está sendo mobilizado. Nesse momento ele está sendo deixado de lado.

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