“Temos no país, nesse momento - em função do próprio processo de
desenvolvimento econômico positivo que estamos vivendo - uma espécie de
recrudescimento das violações no campo do direito à moradia adequada e de
outros direitos humanos”. Essa é a visão da relatora especial para o Direito à
Moradia Adequada da Organização das Nações Unidas e professora da Universidade
de São Paulo, Raquel Rolnik, que encerrou, na noite da quinta-feira (4), o
Simpósio: “I Semana Cultura e Cidade - Metrópolis”, realizado pelo Ministério
Público e pela Universidade Federal do Paraná.
Leia entrevista completa.
Terminou ontem (04/10), com palestra da professora da Universidade de São Paulo e relatora especial para o Direito à Moradia Adequada da Organização das Nações Unidas, Raquel Rolnik, o Simpósio: “I Semana Cultura e Cidade - Metrópolis”, realizado pelo Ministério Público do Paraná, por meio do CAOP de Habitação e Urbanismo e o CEAF, em parceria com o Programa de Educação Tutorial da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná. O evento discutiu o direito à cidade, em suas diversas nuances, sob os olhares urbanístico, jurídico e das artes.
Em sua fala no evento, Raquel
tratou, entre outras questões, do aumento e das características das remoções
que estão sendo feitas para a realização da Copa do Mundo, nas diversas
cidades-sede brasileiras e definiu o que é direito à moradia. Para ela, a
moradia, como direito humano, não tem a ver com o metro quadrado ou com o
material com que são construídas as edificações. “Moradia é casa? Moradia
adequada como direito humano não é falar sobre quatro paredes, o fundamental
não é isso, e sim se, a partir de uma moradia adequada, a população terá acesso
a outras coisas, como segurança, educação, saneamento...”. Disse: “Se a gente
entender profundamente o conceito de moradia adequada, a gente consegue
compreender quando esse direito está sendo violado”.Confira abaixo a entrevista
concedida pela arquiteta e urbanista e, na sequência, fotos de todos os dias do
evento.Terminou ontem (04/10), com palestra da professora da Universidade de São Paulo e relatora especial para o Direito à Moradia Adequada da Organização das Nações Unidas, Raquel Rolnik, o Simpósio: “I Semana Cultura e Cidade - Metrópolis”, realizado pelo Ministério Público do Paraná, por meio do CAOP de Habitação e Urbanismo e o CEAF, em parceria com o Programa de Educação Tutorial da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná. O evento discutiu o direito à cidade, em suas diversas nuances, sob os olhares urbanístico, jurídico e das artes.
Como a senhora vê o
lado humano das desocupações que estão sendo feitas em função da Copa do Mundo,
tema que a senhora vem estudando como relatora especial da ONU?
A urgência da implantação de projetos ligados à Copa, a
predominância da ideia de construção de uma imagem de país e de cidade que
possa reluzir nos meios de comunicação internacionais têm implicado uma atitude
discriminatória em relação às pessoas que estão no meio do caminho desses
projetos. Não é por acaso que as obras
de infraestrutura são projetadas e planejadas em cima das comunidades, numa
ideia absolutamente errônea de que é muito mais fácil passar em cima de uma
comunidade do que num bairro formal, regular, de classe média, porque sai mais
barato. Mas ali tem uma atitude absolutamente discriminatória e equivocada do
ponto de vista dos direitos. Discriminatória porque não reconhece o direito que
aquelas pessoas têm de ter moradia adequada. E a ideia de que sai mais barato é
absolutamente equivocada também porque isso implica não enfrentar o custo de um
momento de expropriação dessas famílias, de construir uma moradia adequada para
elas. Ou seja, tá baseado na ideia da violação, de que aquelas pessoas não têm
direito. Isso é o pressuposto. O que também tenho examinado é que primeiro
essas famílias são removidas e depois vai se pensar o que será do destino
delas. E se trabalha com políticas transitórias como, por exemplo, a bolsa
aluguel. O que estou observando bastante em São Paulo e no Rio de Janeiro
também é que, teoricamente, a bolsa aluguel poderia ser uma alternativa
enquanto aquela moradia adequada não fica pronta, mas aquela moradia adequada não
vai ficar pronta nunca, porque não tem nem projeto dela, nem o espaço, nem o
terreno; o que tem é a bolsa aluguel para aquela família sair da frente, para
aquela comunidade que se organiza para tentar resistir se dispersar. Muitas
vezes esse valor da bolsa aluguel não cobre o custo dessas famílias para morar,
nem provisoriamente. Elas também são transitórias, uma hora acabam, e o que eu
tenho visto é que as famílias somem, desaparecem. Enquanto a comunidade está
lá, está junta, ela resiste. Na hora em que cada uma recebe uma bolsa aluguel,
vai parar não sei aonde, normalmente vão morar em casas de parentes , porque
aquela bolsa aluguel não dá pra alugar nem comprar nada. Elas acabam
desaparecendo e o problema acaba sumindo, mas, na verdade, o que nós estamos
produzindo são mais famílias sem teto, mais famílias ocupando áreas de risco,
porque não têm mais alternativa, porque não têm onde morar. Então, nós estamos
reproduzindo um problema, num momento em que justamente nós temos recursos para
isso. Isso não é só pra moradia. O que eu tenho visto também é a retirada da
população de rua dos locais onde vão acontecer os eventos, sem que, de novo, o
equacionamento da situação daquela família seja parte dessa equação. Se uma
família está na rua, algum problema deve ter. Então, esse problema tem que ser
enfrentado, tem que ser equacionado, não pode ser simplesmente: “sai do
caminho” e “isso não é importante”. Acho
que nós estamos fazendo errado, mas que ainda há tempo de corrigir,
principalmente nas cidades - como é o caso de Curitiba e da Região
Metropolitana - onde essas obras não
começaram.
Existe alguma
expectativa por parte da Relatoria Especial para o Direito à Moradia Adequada
da Organização das Nações Unidas, em
relação à atuação do Ministério Público brasileiro nas questões referentes a
desocupações para obras da Copa do Mundo?
Existe uma enorme expectativa, considerando, é claro, as
especificidades dos Ministérios Públicos nos diferentes estados. Acho que temos
no país nesse momento - em função do próprio processo de desenvolvimento
econômico positivo que estamos vivendo - uma espécie de recrudescimento das
violações no campo do direito à moradia adequada e de outros direitos
humanos. O que tenho percebido é que comunidades
inteiras que já tiveram reconhecido seu direito à moradia, através da própria
Constituição Brasileira e toda legislação que a sucedeu e que instrumentalizou
a Constituição, vivem uma experiência de retrocesso. Nesse momento, é como se
isso tivesse retrocedendo. A coisa mais importante é a implantação desses
projetos de desenvolvimento. Essas pessoas, o seu destino, para onde elas vão,
como elas vão viver, o que vai acontecer, qual será o impacto na vida delas,
não tem a menor importância. Retroceder também no sentido de sair de um conceito
muito mais integral do que representa o direito à moradia adequada, que tem
vários elementos, e reduzí-lo a um elemento só, que é “casa”. Portanto, não
levar em conta, por exemplo, a localização. A localização não apenas numa área
segura, que não é de risco, que não é exposta aos elementos da natureza, mas
que permita ao indivíduo, à comunidade, à família, ter acesso à educação, à
saúde, ao lazer, ao trabalho, às oportunidades econômicas, às oportunidades do
desenvolvimento humano. Isso faz parte do direito à moradia adequada. O que nós
temos visto é que isso não vem sendo respeitado. Também temos visto algo muito
perverso que é, em nome do direito ao meio ambiente para todos os indivíduos,
as famílias e as comunidades, a realização de remoções de comunidades inteiras
sem considerar o impacto na sua vida, no seu direito; como se o direito ao meio
ambiente tivesse precedência ou mais importância que o direito à moradia. Não.
São ambos direitos e podem ser compatibilizados; e devem ser compatibilizados. Então,
acho que há uma expectativa muito grande da relatoria de que o Ministério
Público amplie muito mais a sua atuação dentro desse campo. Acho que o
Ministério Público no Brasil tem sido fundamental na consolidação da democracia
e da cidadania, mas está precisando avançar muito mais no âmbito da justiça
social, dos direitos humanos e, particularmente, no direito à moradia adequada.
Curitiba tem alguma
situação diferente das outras capitais que vão receber a Copa?
A gente não sabe se é diferente, só está mais atrasada. Essa
é a minha visão no momento, porque obras já estão sendo anunciadas, que vão
atingir famílias, mas, a exemplo de outras cidades, a gente não sabe ao certo
quantas pessoas serão atingidas, qual vai ser o equacionamento - seja das
compensações financeiras ou reassentamentos oferecidos a essas famílias - quais
são os projetos. As famílias atingidas ainda não receberam qualquer tipo de
informação, não é dada a elas o direito de participar do equacionamento do seu
destino; tudo isso que eu estou falando são direitos que fazem parte do direito
à moradia adequada, o direito à informação, à participação. E previamente, com
prazo para as famílias poderem se
posicionar, apresentar alternativas.
Às vezes, a gente faz uma curvinha naquela estrada, de três metros, e a
gente evita a remoção de cinco ou seis casas. Então, existe todo um processo
para tratar do assunto e eu não estou vendo Curitiba fazer esse processo. Por
outro lado, como não aconteceram ainda as remoções, a gente não sabe ainda se
isso vai acontecer dessa forma ou não.
Quais são os impactos
desses megaeventos para o futuro dessas cidades?
Até preparamos um material sobre os impactos dos megaeventos
sob a forma de jogos. A gente pensa que tem o jogo dos megaeventos, das
violações, que são faltas. E tem o primeiro tempo e o segundo tempo. No primeiro tempo, aparecem as famílias
atingidas diretamente pelas remoções; aparecem as famílias que têm suas
situações de vida degradadas em função da própria obra. Se não se toma cuidado,
metade da obra cai em cima da casa. Coisas desse tipo que eu tenho visto em São
Paulo, no Rio de Janeiro, em visitas que fiz pessoalmente. A obra vai
aparecendo e degradando também a vida de quem não foi removido, que ficou ali
do lado. Esse é o primeiro tempo. O segundo tempo é o processo de transformação
e valorização imobiliária decorrente de todas essas operações; que na verdade
são grandes operações de valorização imobiliária, de construção de imagem, de
abertura de frente de expansão do capital imobiliário, inclusive internacional,
porque um grande megaevento esportivo internacional é um grande guichê de venda
da cidade e dessas novas frentes de expansão. O que se vê no segundo tempo é o
que a gente chama de “expulsão branca”, a expulsão pelo mercado. Ou seja, o
fato de que você tem o encarecimento dos aluguéis, o encarecimento do custo de
vida, e aí comunidades que tradicionalmente moravam naquele local têm que sair
por uma questão de mercado. E tudo isso pode ser evitado por uma política
pública preventiva, que proteja esses valores, que pode inclusive se valer da
lei de uso e ocupação do solo para proteger esses valores, por exemplo, em
determinadas áreas, impedindo a verticalização, garantindo a manutenção das
casas, ou seja, há diversos mecanismos que podem ajudar a proteger esses
impactos do segundo tempo, quando virão
e como virão.
Qual área seria mais
delicada em relação às desocupações para a Copa em Curitiba?
Vou visitar as áreas que em tese são as que serão atingidas
ou estão sendo atingidas pelos projetos. Entre estes eu diria a construção da
terceira pista e expansão do aeroporto, que vai envolver pelo menos cinco
comunidades e algumas delas numa situação absolutamente difícil e precária.
Também a construção do Anel Metropolitano, que vai atingir ocupações enormes no
município de Piraquara, das maiores ocupações que a gente tem na metrópole,
aqui, e isso também é uma grande preocupação minha. Acho que esses dois
projetos são os que em tese vão atingir mais e provocar mais remoções. Algumas
melhorias nas avenidas também acabam provocando algumas remoções e
reassentamentos, principalmente na Avenida das Torres, que também tem
comunidades às suas margens, muito consolidadas, muito antigas, que também
estão sofrendo intervenções e precisam ser protegidas.
Qual seria o
principal desafio de Curitiba como metrópole?
Tem um desafio que é absolutamente genérico e que vale para
Curitiba e para todas as metrópoles brasileiras. É o desafio, por incrível que
pareça, ainda, da inclusão sócio-territorial de sua população. Nós estamos
vivendo um momento muito positivo de transformação em equipamento das cidades,
no desenvolvimento das cidades, em investimentos na direção de uma melhor
qualidade urbanística. A pergunta é:
isso será para todos? Será que nós não estamos empurrando mais para
fora, mais para adiante ainda os espaços da não-cidade, onde as populações mais
pobres e mais vulneráveis vão acabar ficando? Infelizmente, o que a gente está
vendo é isso, um processo de melhoria, de qualificação da cidade, positivo, mas
não includente, não para quem está lá, não pra quem já vivia lá. Muito pelo
contrário. Você tem uma expansão da fronteira, ainda, que hoje já não está mais
nem no primeiro cinturão. Aquilo que aconteceu num município como São José dos
Pinhais, nos anos 70, nos anos 80. Hoje, o município de São José dos Pinhais é
muito mais consolidado, o que aconteceu no município nos anos 70 e 80 hoje nós
estamos vendo acontecer, por exemplo, em Fazenda Rio Grande, Piraquara. Nós
estamos vendo esse processo, essa periferia da periferia, essa hiperperiferia,
se estendendo pra mais longe e ficando mais difícil para as famílias poderem
sobreviver. Por mais que a gente esteja hoje - e isso é uma tendência positiva
- distribuindo mais renda do que distribuíamos, num processo de crescimento
econômico dos pobres maior do que o
processo de crescimento econômico geral médio, o que também é positivo - se
tudo isso vai acabar se transferindo para o preço da terra, para o preço dos
imóveis, então, de que adianta você aumentar de renda, se o valor dos imóveis
ficou muito mais alto? E é isso que estamos observando. Eu acabei de escrever
sobre isso. Tem aumentos nos últimos quatro, cinco anos, por exemplo, em
cidades como o Rio de Janeiro, aumentos de preço de terreno de 165%, ninguém ganhou
165% no aumento da sua renda. Só os
banqueiros, grandes empresários, mas a população que cresceu sua renda não
cresceu 165%. Então ela está ficando para fora, está ficando para trás. Acho
que isso é um enorme desafio. E acho uma pena, porque nós construímos não só
uma visão, uma utopia, mas nós construímos um ordenamento jurídico no Brasil
que permite trabalharmos na direção da inclusão sócio-territorial. Só que
infelizmente ele não está sendo mobilizado. Nesse momento ele está sendo
deixado de lado.
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